A intervenção na direção escolar da Rede Municipal de São Paulo — A interrupção da garantia da educação pública.
Hoje, recebemos a notícia de que haverá uma intervenção na EMEF Espaço de Bitita, com o afastamento de nosso diretor! Amanhã, deve ser publicado, em diário oficial, o afastamento de mais 30 diretores da rede municipal de educação. Pessoas que, diariamente, dirigem-se para sustentar uma educação para todas e todos. Um ataque, sem precedentes, na história desta rede. Estes profissionais têm nome e trajetória, não são um número a esmo. Aqui, quero tratar de um profissional ao qual admiro demais. Trata-se de Cláudio, um professor que está na escola por convicção e por competência, desde 2011! Cláudio, que poderia escolher qualquer escola, em seus mais de 30 anos de trabalho na rede, escolheu o Canindé! Escolheu estar com a comunidade remanescente da favela onde viveu Carolina Maria de Jesus e com os sujeitos em travessia nesta terra. Cláudio também é migrante e tem a sabedoria de quem se faz em uma cidade diversa, plural e desigual. Ao longo de 14 anos, vi este diretor promover o acesso e garantir a permanência de crianças e adolescentes de todos os continentes deste planeta; trabalhou para reorganizar o tempo da experiência formativa de todas as pessoas; criou a Educação de Jovens e Adultos para as mães e pais dos estudantes, para os trabalhadores da cidade e para quem teve que deixar a escola pelas identidades que possuem. Cláudio fundou o “Português para Migrantes”, que hoje se configura no programa “Portas Abertas” da rede municipal de educação. Em 2019, a escola já havia cumprido a meta do Plano Nacional de Educação e do Plano Municipal de Educação, oferecendo educação integral e em tempo integral para metade das crianças e adolescentes da Unidade Educacional. Após oito anos de luta, tendo Cláudio como articulador, a escola passou a se chamar EMEF Espaço de Bitita, em homenagem ao apelido de infância de Carolina Maria de Jesus, substituindo o então nome da escola “Infante Dom Henrique”, que homenageava o sequestrador e assassino português, que organizou as bases do tráfico negreiro, que vigoraria por 350 anos. Quero, neste texto, compor um relato sobre meu irmão/companheiro Cláudio!
Estou há nove anos no Espaço de Bitita e posso dizer, com convicção, que a dedicação que temos, sozinha, não basta! O compromisso só não dá conta. Formamos um grupo de trabalhadoras e trabalhadores da educação, que estão na escola há mais de 10 anos. Em 2013, a escola recebeu um prêmio de escola destaque, devido ao IDEB. Em 2017, tivemos a nota 6,1 neste mesmo índice, referente aos anos iniciais. Um feito! O secretário de educação foi, pessoalmente, à escola. Celebrado por muitos, os dados se consolidavam, mesmo com resultados que podem ser debatidos na desigualdade do Brasil que construímos. Em 2015 a escola recebe o convite da UNESCO para ser uma das escolas associadas a esta instituição. Em 2017, a Escola recebeu o prêmio “Criativos da Escola” e o prêmio “Faz a Diferença” do grupo Globo. Uma das professoras da escola ganhou o prêmio “Professor Nota 10” da Fundação Victor Civita, realizando um projeto em parceria com Cláudio. Em 2018, começaram as novas frentes da assistência social na região do Canindé. A cidade fez uma escolha. Criou mais de uma dezena de equipamentos para acolher as pessoas que moravam nas ruas. Acolheu mulheres vítimas da violência, garantiu dignidade a quem procurava o que comer nos sacos de lixo. Uma ação da qual nos orgulhamos de presenciar. Hoje, são milhares de pessoas nos centros de acolhimento que compõem o quarteirão da escola. A dignidade precisa ser celebrada, no entanto, isso não se configurou em um processo de inclusão social, pelo contrário, constitui-se como um campo de concentração, no qual a referência não se dá no encontro com o outro, mas com os iguais. Em 2017, a escola contava com cinco estudantes dos centros temporários de acolhimento. Inclusão em curso, resultados positivos. No início deste ano, celebramos Guilherme Isaque, aprovado na UFSCAR. Estudante com paralisia cerebral e que esteve, regularmente, nos nove anos do fundamental, formando-se em 2021. Notícia no país que nega a presença da escola pública que o constituiu. Hoje, temos 150 crianças e adolescentes que moram nas Vilas Reencontros, nos centros temporários de acolhimento Maria Maria, no Centro Especial de Acolhimento aos Migrantes e nas ocupações que surgiram na região da República, na Avenida do Estado e nos terrenos abaixo da linha do metrô da Armênia. Cláudio já foi, pessoalmente, a estas ocupações e centros de acolhimento para conversar a respeito da garantia da presença das pessoas na escola. A escola popular finalmente aconteceu. As crianças e adolescentes, moradores destes centros de acolhimento, carregam a tristeza de terem experiências educacionais descontinuadas e, não é raro, matricularmos crianças de 11 anos que ingressam em uma escola pela primeira vez. Os ausentes de outros tempos estão na escola. Ao longo deste período, o número de estudantes com deficiência saltou de sete para mais de 40 crianças e adolescentes. A crise migratória chegou com força e, hoje, temos 230 estudantes migrantes e filhos de migrantes, sendo metade formada por recém chegados ao Brasil. A taxa de transferência na escola, ao longo do ano, beira os 20%! Somente entre fevereiro e maio deste ano foram 98 matrículas de crianças que migraram para outros lugares da cidade, do país e do mundo. Isso significa que o encontro de hoje terá novos atores amanhã. A escola se refaz diariamente e Cláudio atuou para que a escola pudesse, permanentemente, mudar e se adaptar. Para tentarmos lidar com cada uma dessas dimensões, individualizamos o currículo, criamos recuperação continuada permanente, desde o primeiro dia de aula. Falamos em várias línguas, adequamos o currículo para as crianças do atendimento educacional especializado. Criamos a EJA, inicialmente para os pais e mães das crianças e, hoje, atendemos 65 mulheres transgênero. Reclassificamos estudantes ao longo de todo o ano, para que eles estejam acompanhados de seu grupo etário. Em 2022 recebemos o convite para sermos um polo das Escolas 2030, ligados a uma agenda de implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Deitamos, todos os dias, sabedores de que seguimos um caminho correto e atento às dimensões da educação integral, antirracista, em diálogo com os povos originários e atuante para a equidade das identidades de gênero. Por conta deste trabalho, a escola recebeu o Voto de Júbilo da Câmara Municipal de Educação e Cláudio recebeu o título de Cidadão Paulistano, também da Câmara Municipal. Experiência celebrada e estudada por centenas de estagiários, ano após ano. Um marco no atendimento da diversidade.
No entanto, se a métrica é o índice, perdemos. Não recebemos o Prêmio de Desempenho Educacional (PDE) na integralidade. Somos listados como os que não conseguem, embora consigamos todos os dias, ainda que este lugar, esta escola, este coletivo não tenha a companhia da moradia, a segurança pública, a cultura e a saúde como parceiras no volume do que o território exige. Lutamos, praticamente, sozinhos contra a violência sexual. Ao término de 2024, foram dez casos, somente em dezembro. O Conselho Tutelar virou um órgão que nos expõe e não atua para a constituição de uma rede de proteção. Com isso, como profissionais, lutamos contra a estafa e criamos caminhos para não adoecermos com o que estamos descobrindo. A questão não é querer estar na escola, é como continuar? O bairro virou um campo de concentração, com mais de 2000 pessoas acolhidas, somente na quadra da escola, com mais de 10 equipamentos da assistência social. A dependência química e a violência giram a roda gigante da cidade e nós estamos aqui. Nós precisamos contar a história desse lugar. Ele não é o que dizem sobre nós. Em 2023, tivemos duas turmas de 5º ano. Uma delas recebeu 20 estudantes novos, ao longo do ano, sendo 10 migrantes recém chegados da Venezuela, Angola, Bolívia e Afeganistão. Três deles, público do Atendimento Educacional Especializado. A professora estava absolutamente preparada e qualificada para isso e trabalhou arduamente para alfabetizar a todas e todos. No segundo semestre, a rotina de transferência seguia, pois as famílias chegam a São Paulo, entendem seu funcionamento e migram novamente. Os estudantes que entraram fora de fluxo foram reclassificados, fazendo com que mais de 32 estudantes estivessem nessa sala, ao longo do ano. Em novembro, vieram as provas de avaliação externa. Em uma sala, onde 60% dos estudantes mudaram, como poderia ser a avaliação? Feito, nota 4,8! Não há milagre nem magia. O esforço de garantia de direitos não se revela no índice, mas sim na presença dos sujeitos, que até ontem não estavam na escola. É preciso conhecer cada lugar. Para coroar, os nonos anos, que já apontavam na prova São Paulo com resultados acima da média, no dia do IDEB, apresentaram mais de 20% de ausências e não foram listados. A estudante do Afeganistão não pode realizar a prova. Deixou a sala em choro e me disse, na língua da tristeza: “Por que não me deixam mostrar o que sei?”. Estudantes que estavam na lista do Sistema de Avaliação da Educação Básica já haviam sido transferidos para outras escolas. Posso assegurar que quem permanece aprende e avança, mas frente ao rio que passa, ele nunca é o mesmo e a água segue rolando no Espaço de Bitita. Nós seguiremos e Cláudio continuará, pois ele fundou uma nova forma de construirmos a educação junto a este coletivo.
Por fim, tal como Cláudio, é preciso conhecer as diretoras e diretores que serão afastados. É preciso entendê-los para além de um número. A universalização da educação deu-se por meio da atuação destas pessoas, que agora serão colocadas à margem e expostas em praça pública. Precisamos estar mais juntos do que nunca para uma proposta de educação que chegue a todos os lugares, ainda que na precariedade da vida que nos impõem. E isso, ao longo dos 19 anos que tenho de rede, posso dizer: dá-se pela ação e obra dos trabalhadores e trabalhadoras da educação pública. Vou aprender a ler para ensinar meu camarada.
Carlos Eduardo (Cadú) Fernandes Junior
Coordenador Pedagógico da EMEF Espaço de Bitita.